Em meu mundo o problema da cor vermelha, Luca Greco e Giuseppe Romano olham para o mesmo canvas e enxergam cores diferentes (ver Um Mundo Colorido - seção Grecos e Romanos), deveria despertar a nossa curiosidade para diferentes experiências que outras pessoas podem ter, que outros seres podem ter, para expandirmos o escopo de nossa capacidade interpretativa, mas ao invés disso muitas mentes imediatamente associam subjetividade do modo como navegamos e representamos o mundo com caos social, anarquia, imagens da Torre de Babel e do desencontro de linguagens, em que cada um se assegura de sua própria verdade e o mundo é preenchido por um eterno relativismo e cinismo capaz de dobrar fatos conforme o interesse de cada um. Alguns acreditam que porque não conseguimos perceber o mundo independente da mente a verdade é apenas um produto da nossa individualidade.
Essa não é a visão de mundo que proponho, um deve ser capaz de distinguir entre questões de percepção e questões de raciocínio. Percepção é a capacidade que temos de nos tornar cientes de alguma coisa através dos sentidos, ou de termos uma impressão mental sobre algo, nossa capacidade de medir, interagir. Raciocínio é a capacidade que temos de usar lógica para entender, pensar e formar julgamentos sensíveis dada a variedade de percepções e evidências disponíveis. Por isso acredito que:
“Nossas pressuposições e teorias sobre como o mundo funciona devem ser caracterizadas pela objetividade epistemológica”
Um outro jeito de dizer a mesma coisa é que existem razões não-arbitrárias para as nossas diferentes perspectivas e percepções. No problema da cor vermelha por exemplo somos capazes de entender o porquê Giuseppe Romano pode olhar para o mesmo canvas que Luca Greco e enxergar cores diferentes, exatamente porque possuem diferentes tipos de células cone em suas retinas. Dada as nossas diferenças de percepção nós podemos descobrir uma possível solução para o problema e construir tecnologias ou convenções sociais para lhe dar com isso, como de fato foi feito com construções de lentes para daltônicos. Tudo que precisamos para ser objetivo com problemas de percepção é levarmos em conta a diferença de realidade percebidas pelos sujeitos para construirmos soluções adequadas.
Para evitar embaralhamentos é bom esclarecer algumas coisas sobre o que significo por objetividade. Quando falo de objetividade, quero dizer objetividade epistemológica, isto é, em relação a fundação e validade do nosso conhecimento. Existem diferentes formas em que o termo “objetividade epistemológica” é utilizado, as vezes para expressar a busca pelo conhecimento livre de viés pessoal, ou para expressar a necessidade de evidências empíricas e metodologias confiáveis para garantir a repetibilidade do conhecimento, nesse ensaio não significo nada disso, significo simplesmente a ideia de que realmente existem respostas melhores e piores para qualquer problema dado.
Voltemos para o problema da cor vermelha entre Luca Greco e Giuseppe Romano. Nesse cenário quando um pergunta: Qual é a cor do canvas? Dizer que o canvas é vermelho é uma boa resposta pois Luca Greco o enxerga vermelho, mas dizer que a cor do canvas é vermelho para Luca Greco e marrom para Giuseppe Romano é uma resposta melhor, mais objetiva epistemologicamente, porque leva em conta as diferentes perspectivas do problema, e não finge ter objetividade onisciente sobre a vermelhidão do canvas. Em filosofês isso significa que acredito que somos seres ontologicamente subjetivos porque todas as nossas experiências e percepções são inevitavelmente dobradas por quem somos, tudo acontece pelo intermédio da consciência, porém quando se fala de conhecimento podemos encarar o mundo de forma objetiva epistemologicamente porque reconhecemos que existem formas melhores e piores de navegar o mundo de acordo com nossas próprias metas e valores, individuais ou coletivas.
Uma obsessão muito encontrada com quem acredita em objetividade é a necessidade de procurar por respostas únicas para os problemas, a intuição de que o canvas só pode ser de uma cor parece ser óbvia, mas nem mesmo todos problemas no campo da matemática, que é dita símbolo da objetividade, possuem respostas únicas. Perguntar qual é a verdadeira cor do canvas para Luca Greco e Giuseppe Romano pode ser como perguntar qual é a verdadeira raiz quadrada de uma equação do segundo grau, não há uma verdadeira resposta, o problema tem duas respostas no contexto fornecido. Problemas podem ter diferentes respostas equivalentes, isso não é um empecilho para objetividade epistemológica.
Outra noção equivocada é que de alguma forma levar em a conta a situação, a personalidade, a individualidade, os diferentes corpos e mentes, se tornou antônimo de objetividade na cultura popular e científica, por essa razão campos do conhecimento das ciências sociais e humanidades frequentemente não são considerados objetivos, e por vezes nem mesmo científicos. Ao contrário, penso que a perspectiva do observador e do observado, o contexto, é fundamental para exercitar ciência de primeira qualidade. Imagine dizer que a objetividade da medicina é perdida porque um leva em conta a individualidade de um paciente, por que leva em conta as peculiaridades do seu corpo, e as particularidades das suas experiências de dor. Dizer isso não faz nenhum sentido na medicina, de fato levar em conta a individualidade corporal e a experiência subjetiva do sujeito é um sinal de mais objetividade médica, o que é dizer que melhores respostas serão encontradas para o problema do paciente.
Se isso é verdade para uma ciência como a medicina, não sei porque não é verdade também para ciências como a sociologia, a psicologia, a filosofia, a ética. Ser sensível a subjetividade ontológica deveria ser sinônimo de mais objetividade epistemológica, mais ciẽncia. Dizer por exemplo que a ética não é um campo objetivo do conhecimento porque as pessoas possuem diferentes experiências de vida, diferentes predisposições, diferentes ideias de bem-estar, é perder a convicção de que mesmo dadas essas diferenças realmente existem respostas eticamente melhores e piores na relação entre pessoas distintas. É como se pudéssemos assistir um muçulmano e um cristão jogar pedras na cabeça um do outro até se matarem e pensarmos que nada melhor eticamente poderia ser feito por ambas as partes.
Dizer que campos do conhecimento são objetivos epistemologicamente não é afirmar que sabemos todas as respostas, nem mesmo afirmar que todo problema tem resposta satisfatória, em matemática por exemplo estamos cheios de problemas que ninguém tem a mínima ideia de como resolver, ou ainda cheio de problemas cujas soluções existentes são debatidas e controversas, e nada disso remove da objetividade da matemática. De alguma forma quando mudamos de campo de conhecimento, para as ciências sociais ou humanas por exemplo, objetividade se torna algo impensável por causa da existência de problemas aparentemente insolúveis e da pluralidade de opiniões em certos tópicos.
Nossa confusão mental coletiva não é evidência da perca de objetividade epistemológica, problemas sociológicos, filosóficos, éticos, literários realmente possuem soluções melhores que outras. Imagine que uma garota de 12 anos no colégio em meio a um teste de matemática sem saber responder a enorme equação do primeiro grau decide esticar o pescoço para ver a resposta dos coleguinhas e descobre que todos ao seus redor possuem uma resposta diferente para o mesmo problema, em frente a sua própria confusão e a variedade de opiniões encontradas ali ela decide que a matemática não é uma ciência objetiva, o que é dizer que não existem realmente melhores e piores respostas para aquela equação do primeiro grau. Como num teste, em qualquer campo do conhecimento variedade de opiniões é garantida, e ainda com o agravante de que muitas das vezes estamos coletivamente confusos e nem mesmo sabemos quem é o professor, mas nada disso remove a objetividade epistemológica da matemática, o mesmo penso que é verdade para todos os outros campos do conhecimento.
Nas ciências humanas, sociais, ciências com caráter normativo, que tentam nos recomendar o que devemos fazer, frequentemente encontramos mais dificuldades, mais confusão mental coletiva, mais variedade de opiniões sobre alicerces básicos, o que dificulta o consenso que é muitas das vezes necessário para construir corpos de conhecimento robustos e capazes de sobreviver multiculturas. Mas essa dificuldade no campo da ciências humanas deve ser uma expectativa para os seus estudantes, mais consenso e clareza deve ser esperado por exemplo na disciplina da geometria euclidiana cujo objeto de estudo são formas uni, bi e tri-dimensionais ideais e inanimadas, o que já é difícil de ser estudado e encontrar consenco. A construção de generalizações nas ciências humanas devem ser mais raras, as respostas mais escassas, os enigmas maiores, a confusão coletiva e a variedade de opinião sempre presentes, afinal são ciências de humanos, argumentavelmente o objeto de estudo mais complicado que encontramos até agora. Mas novamente, dificuldade, variedade de opinião e confusão coletiva não significa que o campo de estudo não é objetivo epistemologicamente, isto é, que não possui melhores e piores respostas para os assuntos que investiga.
Alguns não aprovam o termo “objetividade”, principalmente em humanidades e ética, por medo de abrir portas para a entrada de supostos “bastiões da verdade”, isto é, pessoas que não só estão com absoluta convicção da verdade, mas que estão convictos que sabem o que é melhor para você e sob o guarda-chuva da objetividade sentem-se com a consciência livre para tentar desnecessariamente impor formas de pensar e formas de ser sobre outras. Isso claro pode culminar em opressão social, na desconsideração da pluralidade de opiniões, em atos de paternalismo, maternalismo, autoritarianismo, como observado na história e atualidade das nações, ou até mesmo em nossas vidas pessoais. Mas peço ao leitor que separe esse fenômeno do termo “objetividade”, pois por objetividade, em relação as humanidades, significo apenas que existem formas melhores e piores de conduzir relações humanas, a informação de que pessoas possuem níveis de convicção equivocados em certos tópicos das humanidades e estão dispostos a tentar impor suas convicções sobre outras não deveria te dar pausa em acreditar num gradiente de melhores e piores ideias sobre como conduzir relações humanas.
Por Yuri Santana
Arte por Pablo Picasso - Guernica (1937)
E-mail: yurisantana0001@gmail.com