As pessoas geralmente aceitam a existência do mundo objetivo, o termo “mundo objetivo” pode ser usado em diversos contextos com diferentes significados, nesse caso quero expressar que as pessoas reconhecem que podem usar seus sentidos e percepção para interagir com objetos e fenômenos que estão num mundo externo a elas, mundo esse que é caracterizado como físico. Essa capacidade que temos de interagir com objetos e fenômenos, de reproduzirmos experimentos e medições com confiabilidade, e até de realizar previsões de comportamento do mundo externo, leva muitos traçar a inferência de que podemos perceber a realidade objetivamente, isto é, de forma independente da nossa mente, da nossa consciência, do nosso ser. Nesse ensaio irei defender o contrário dessa asserção, que não podemos perceber a realidade objetivamente, isto é, de que a forma com que interagimos com o mundo é completamente caracterizada pela subjetividade.
“A forma com que interagimos com o mundo é caracterizada completamente pela subjetividade”
O que quero dizer com essa proposição é que todas as nossas experiências são caracterizadas pela internalidade, isto é, a única forma conhecida de percebermos um acontecimento é por meio de nossa consciência. Outra informação que pretendo transmitir com a asserção acima é a de que a nossa interação consciente com o mundo é preenchida de particularidades, o que nos dá a autoridade de dizer que diferentes pessoas podem ter diferentes experiências do mundo mesmo se estivermos interagindo com o mesmo objeto e da mesma maneira, que essa diferença de experiência pode ser explicada pela circunstância de quem somos.
Dizer que todas as nossas experiências são caracterizadas pela internalidade, subjetividade, é simplesmente dizer que é apenas por meio da nossa consciência que tomamos notícia do mundo. Isso talvez pareça ser um ponto descontroverso, mas a noção de que nossos pensamentos, sentimentos, e etc, são caracterizados por essa subjetividade é comumente mais aceita do que a noção de que nossas experiências físicas também são subjetivas dessa mesma forma.
De alguma forma as pessoas entretém facilmente a noção de que nossas experiências físicas, diferentemente das experiências mentais, acontecem fora do contexto da nossa consciência, e isso não faz o menor sentido. Quando um pega na maçaneta do guarda-roupa a experiência acontece tanto em sua consciência quanto quando um pensa em um urso polar. Isso não é dizer que a maçaneta está dentro da sua consciência, mas apenas que a experiência de tocar a maçaneta aconteceu em sua consciência tanto quanto quando pensa em um urso polar.
Por isso digo que todas as nossas experiências físicas estão completamente submetidas a nossa percepção individual e consciente das coisas, e se não em minha consciência onde então aconteceria tal experiência? Não há outra forma conhecida de ter experiências. Um só é conhecedor de que tocou a maçaneta do guarda-roupa no momento em que se torna consciente sensorialmente do acontecimento.
Muitas pessoas usam a palavra “mente” como sinônimo de “consciência”, mas nesse contexto não eu. Quando eu penso em um urso polar eu posso dizer que estou tendo uma experiência mental, mas não quando eu estou tocando o guarda-roupa, quando toco o guarda-roupa digo que estou tendo uma experiência física, mas em ambas as experiências digo que aconteceram em minha consciência pois não encontro nenhuma outra alternativa.
Isso explica porque penso que nossas experiências são caracterizadas pela internalidade, isto é, que é apenas por meio da consciência que tomamos notícia do mundo, mas não diz nada sobre a particularidade da nossa experiência consciente, sobre a particularidade da nossa subjetividade. Para ilustrar a questão lhes apresento o Problema da Cor Vermelha.
Luca Greco era um pintor da renascença italiana, estudante das cores, passava horas confrontando o canvas branco de seus quadros. Luca Greco mais pensava do que pintava, para desespero de seus parentes, amigos e namorada. Certo dia um cliente chamado Giuseppe Romano entrou em sua galeria, Luca raramente tinha clientes, e quando os tinha geralmente dizia que eram um impecilho para o seu trabalho. Mas Giuseppe entrou em sua galeria sereno, era curioso e paciente, trocou algumas palavras com Luca e logo se entrosaram, começaram a conversar sobre o poder dos diferentes elementos visuais da arte. Luca Greco estava gostando de conversar com Giuseppe, então decidiu lhe explicar a importância da cor na expressividade de uma obra e o apresentou seu quadro Guerra e Sangue:
– Veja Giuseppe como somente a cor vermelha pode expressar a violência necessária para este quadro – Falou Giuseppe empolgadamente.
– É verdade.. — Disse Giuseppe Romano meio sem graça sem querer estragar a empolgação de Luca Greco
– Apenas essa cor poderia retratar esse tipo de apelo emocional, não acha!?
– É que…
Giuseppe queria expressar algo mais ainda não conseguia interromper a empolgação de Luca, e Luca Greco seguiu se engrandecendo em seu monólogo:
– Ao mesmo tempo que nos sentimos completamente apaixonados somos tomados pelo sentimento chocante da guerra, o quadro não faria nenhum sentido em preto e branco, é como mágica em arte!!! – Falou Luca já com o tom de voz levantado completamente imergido em seu discurso.
Giuseppe Romano finalmente toma coragem e interrompe Luca:
– Luca, tenho algo a te dizer!
– Diga Giuseppe, não se contenha, diga. – Disse Luca percebendo que era algo de suma importância.
– Eu não enxergo a cor vermelha.
– Como assim não enxerga a cor vermelha!? Não estás brincando comigo não é Giuseppe?
– Não Luca, não estou, nasci com uma condição na visão e não enxergo a cor vermelha.
– Oh! Giuseppe, que tragédia, mas.. – Disse Luca ainda tentando digerir a informação.
– Mas o que Luca?
– Se não enxerga vermelho, que cor enxerga?
– Todos me dizem que confundo vermelho com marrom, geralmente acerto o que é marrom, mas sempre que há uma cor que dizem ser vermelho para mim parece idêntico ao marrom.
– Que tragédia Giuseppe! Que tragédia!! – Disse Luca Greco encarando o vazio e se dando conta da gravidade do problema
– Não é para tanto Luca, consigo sobreviver sem problemas– Falou Giuseppe sorrindo sem compreender o ar dramático de Luca–, por que acha que é uma tragédia tão grande meu amigo?
– Porque se visto, ao invés de vermelho, em cor marrom meu quadro Guerra e Sangue é completamente insípido, morto, desprovido de ação, dói meu coração só de imaginar, óh Giuseppe que tragédia, que tragédia!
E continuaram conversando sobre outros assuntos mas Luca Greco não superando o fato do problema de visão de Giuseppe Romano estava aéreo e distante, logo a conversa morreu e Giuseppe também já precisava ir. O resto da tarde Luca Greco ficou com o pincel na mão ficava encarando um de seus canvas branco ainda com a imaginação fixada no problema de visão de Giuseppe Romano.
Sem dar um pincelada sequer Luca Greco pensava se realmente seria possível uma pessoa enxergar cores diferentes olhando para a mesma amostra, conversando consigo mesmo tentou questionar a honestidade de Giuseppe Romana, mas falhou, ele pareceu ser um cara confiável e não tinha razões para mentir. Sua mente entrava em um espiral, até então pensava que as cores eram universais, que eram independentes dos espectadores, que os Deuses da Arte jamais cometeriam tal crime. Luca Greco mais uma vez, para desespero de seus parentes, amigos e namorada por semanas entrou numa fase de bloqueio criativo, em que trabalhava muito e produzia nada, pois estava a procura de uma explicação para tal aberração da natureza.
Esse é o problema da cor vermelha: Na galeria há um canvas pintado completamente de vermelho, quase todos que entraram na galeria enxergaram o canvas vermelho, Luca Greco enxergou o canvas na cor vermelha, Giuseppe Romano enxergou o mesmo canvas na cor marrom, qual é a verdadeira cor do canvas?
Um possível argumento é de que algumas pessoas estão adequadamente equipadas para perceber a verdadeira cor do canvas, como Luca Greco e os visitantes de sua galeria, que a verdadeira cor do canvas é definida por ordenação divina ou simplesmente por questão de fato do universo. Por isso outras pessoas não estão equipadas corretamente para saber qual é a verdadeira cor do canvas, como Giuseppe Romano. Mas como Luca Greco e seus visitantes sabem que possuem o ponto de vista correto e estão vendo a verdadeira cor do canvas? A resposta é: Eles não sabem. Giuseppe Romano não tem acesso ao ponto de vista de Luca e seus visitantes, deveria ele aceitar esse ponto de vista em pura fé, mesmo que sua própria experiência negue o que alegam? Não parece correto.
Alguns ainda argumentariam que a verdadeira cor do canvas é vermelho, o que faz Giuseppe enxergar marrom é uma doença e portanto não deve ser levado em conta, apenas a experiência das pessoas normais devem ser levadas em conta, e a experiência das pessoas normais que frequentam a galeria de Luca diz que o canvas é vermelho. E de fato existe uma condição chamada protanopia, um tipo de daltonismo, em que a percepção da cor vermelha é afetada e pode ser confundida, por exemplo, pela cor marrom. Mas dizer que o canvas é vermelho porque essa é a experiência das pessoas normais, e por normal um quer dizer pessoas que possuem um comportamento tíṕico ou médio, nesse caso que possuem três tipos de células cones na retina que são sensíveis a formas de onda do vermelho, verde e azul, é o mesmo que dizer que o canvas é vermelho porque a maioria das pessoas enxerga vermelho, e acho que todos podem ver o problema factual de definir questões perceptuais pela força da maioria. Isso não é dizer que não podemos ter convenções do que é a cor vermelha, afinal tais convenções facilitam nossa comunicação, mas convenções não respondem filosoficamente qual realmente é a cor do canvas.
Quando pergunto qual é a verdadeira cor do canvas, o espírito da questão é: Independente do observador, qual é a cor do canvas? Pergunta para qual em minha opinião não existe resposta, pois a cor do canvas depende do observador, um não pode dizer qual a cor do canvas independentemente do observador, pois para saber a cor do canvas um precisa observar a partir de um ponto de vista particular. Por isso que penso que a resposta mais adequada para a pergunta “de que cor é o canvas?” é: Vermelho para Luca Greco e marrom para Giuseppe Romano. Essa resposta está encapsulada no que quero dizer com: A forma com que interagimos com o mundo é caracterizado completamente pela subjetividade. Que a cor do canvas é definida pela interação entre sujeito e objeto. Portanto, filosoficamente, acredito que somos seres ontologicamente subjetivos, o que quer dizer que o jeito que navegamos, experimentamos e percebemos o mundo é inerentemente dependente de quem somos, como corpos físicos, dos cones na retina dos nossos olhos por exemplo, das experiências que tivemos no passado, de tudo aquilo compõe a nossa individualidade, seja mental, seja corporal. Em questões de percepção eu acompanho Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”.
Por Yuri Santana
Arte por Paul Liégeois - Still Life With Peaches, Grapes, Plums and Silver-Gilt Shaker (Século 17)
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