Existem duas formas comuns relevantes em que a palavra mérito é utilizada, a primeira serve para indicar uma qualidade que vale a pena ser louvada, uma conduta que merece recompensa, que merece honra ou estima, um pode dizer por exemplo: Ele compôs uma boa quantidade de trabalhos de mérito, o que quer dizer que ele compôs trabalhos que merecem louvor e/ou outras formas de recompensa. A segunda forma comum de uso da palavra mérito tem sentido neutro, em que a responsabilidade é atribuída ao sujeito, nesse sentido um pode dizer por exemplo: Aquele quadro é de mérito dele. O que significa dizer que o quadro é de toda ou majoritária responsabilidade dele, que é ele que é o real responsável pela criação do quadro, sejam eles de boa ou má qualidade. Nesse ensaio vamos essencialmente nos preocupar com a segunda forma do uso da palavra ‘mérito’, isto é, com o uso neutro da palavra, aquele que diz respeito a atribuição de real responsabilidade a um indivíduo.
Ao meu ver existe um falha nessa concepção de senso comum da ideia de mérito, para melhor clarificarmos o que significa ter mérito podemos responder a seguinte pergunta: O que é necessário para dizer que uma pessoa possui mérito? No senso comum podemos dizer que existem duas condições necessárias para que mérito seja atribuído a uma pessoa. Primeiro, se ela agiu de acordo com sua iniciativa, como consequência de suas decisões conscientes, e quanto mais forte a conexão entre a vontade consciente do sujeito e a atividade em questão é dito que maior é o mérito. Segundo, se ela realizou algum esforço ou sacrifício, físico, mental ou qualquer outro, em direção aquilo que deseja construir, criar, produzir, seja essa coisa de boa qualidade ou má qualidade, o esforço realizado pela pessoa é uma das coisas que a faz responsável pelos resultados daquilo que realizou, então é dito que tal coisa, independente da qualidade, é de seu mérito.
Aqui vamos desafiar essa noção de mérito. Desafiar a noção de que somos os originadores e realmente responsáveis por nossas decisões e ações conscientes, iremos desafiar as bases da noção de mérito. A primeira coisa que faremos é encontrar tudo aquilo que sabemos que não é de nosso mérito para tentarmos revelar os limites dessa noção.
Começaremos por toda a matéria que está presente a nossa volta, com tudo aquilo que impressiona nossos sentidos e ocupa grande parte da nossa vida, a pergunta que faremos então é: De todo bem material que está a nossa volta, quais desses são produtos do nosso mérito?
A premissa básica é que não declararmos mérito pessoal por aquilo que não foi criado nem produzido sob o nosso controle individual, logo observamos que tais coisas representam boa parte daquilo que preenche o universo, de fato representam a esmagadora maioria das coisas. Nós provavelmente não temos mérito pela existência do sistema solar, de planetas, de estrelas, não temos mérito pela natureza que habita o planeta Terra, como indivíduos não temos mérito nem mesmo pela grande parte da tecnologia existente no mundo. Provavelmente o dispositivo pelo qual lê essas palavras não fomos nós quem produzimos, nem a tecnologia contida nele, nem as palavras que aqui lemos, nós provavelmente não pintamos a parede da nossa casa, muito menos a construímos, quase todas as coisas que popula o nosso campo de visão neste momento, o piso do chão, a caneta, o celular, o computador, a roupa que usamos, a comida que comemos, essas são coisas cujo mérito de criação ou produção em sua absurda maioria não pertencem a nós como indivíduos [1].
No mundo das ideias a conclusão é semelhante. A grande maioria do conhecimento teórico e tácito que temos sobre o mundo não é de nossa criação ou produção, embora podemos ter mérito em aplicar conhecimento, é fato que quase sempre simplesmente herdamos o conhecimento que temos hoje, proveniente de milênios de anos de deliberação ou tentativa e erro, de análise, insights, revisão, observação, experimentos, realizados por muitas mentes do passado até chegarmos ao patamar de conhecimento teórico que existe atualmente. Isso também é válido para o conhecimento tácito que é ensinado informalmente através da tradição de mestre-aprendiz, em que nenhuma teoria exata é explicitamente declarada, mas que com certeza conhecimento está sendo disseminado. Até nossos pensamentos, tradições culturais, dizeres populares, são transmitidos em uma automaticidade difícil de acompanharmos conscientemente. Ideias que populam nossa mente muito provavelmente tiveram origem em outras mentes.
Em outras palavras, a grande maioria da tecnologia, máquinas, objetos, matéria, noções, ideias a nossa volta, mesmo que sejamos seres brilhantes e diligentes, não possuem uma gota de mérito que pode ser atribuído em origem a nossa pessoa. O mundo é construído basicamente de ideias e matérias que não são de nosso mérito individual, por mentes e músculos externos a nós, por mentes e músculos contemporâneos e do passado a nossa existência individual. Apesar de realizarmos a nossa insignificância individual na construção da imensa realidade em que vivemos, essa porção do argumento não subtrai em nada da ideia central de mérito do senso comum, que é a de que somos responsáveis, originadores, que somos seres conscientes que realizam escolhas e somos capazes de empenhar mente e corpo para construir o que desejamos, e mesmo que a nossa contribuição seja ínfima em relação a uma realidade maior, a origem das nossas escolhas conscientes e esforços somos nós mesmos, essa é a premissa indubitável, o alicerce da ideia de mérito em si. Continuaremos então a investigar essa premissa.
É comumente aceito que não possuímos mérito por aquilo que é feito a partir de fontes externas a nós, isto é, o que músculos e mentes externos ao nosso corpo fazem não é de nosso mérito, o que a natureza, plantas, outros animais e pessoas fazem não é de nosso mérito, portanto o único lugar que nos resta procurar por mérito é em nosso próprio corpo e mente.
Mas sabemos que nem tudo que nosso corpo e mente faz é de mérito nosso. Nosso corpo e mente realizam o que chamamos de ações involuntárias, isto é, ações que não realizamos conscientemente cuja automaticidade é evidente. Nosso corpo por exemplo produz hormônios, reações químicas variadas, o nosso cabelo cresce, a nossa unha cresce, nosso sistema digestivo compartimenta comida, o nosso olho pisca constantemente sem o nosso conhecimento, a nossa pele se renova, o corpo produz sangue se necessário, o nosso organismo biológico realiza uma quantidade absurda de ações involuntárias que não há a nossa interferência consciente. Você sente que tem mérito pela produção de glóbulos brancos que seu corpo realiza neste exato momento? Provavelmente não. [2]
É importante ressaltar que as ações inconscientes e involuntárias compõem a grande maioria das ações realizadas por nossos organismos, acho que é correto dizer que não temos nem sequer a mínima ideia da ínfima parte do que nosso corpo está realizando biologicamente neste exato momento para se manter ativo, e muito menos temos a capacidade para controlar conscientemente a grande maioria dessas ações.
Dito isso, o que sobra é apenas uma infinitésima parte em que a concepção moderna de mérito se sustenta sob, as ações realizadas por nós que são conscientes e voluntárias, ações que dizemos serem produtos do nosso arbítrio, o levantar de um braço, andar em uma certa direção, aprender matemática, escolher que profissão seguir, essas são ditas ações e decisões conscientes de livre e espontânea vontade que determinam e comprovam o nosso mérito, isto é, a nossa responsabilidade positiva ou negativa sobre as ações que tomamos. Investigaremos na próxima seção se de fato as nossas ações conscientes e voluntárias são alicerces que sustentam esta concepção de mérito.
A hipótese mais aceita sobre a origem de nossas ações/decisões conscientes e voluntárias é a de que são realizadas por um Eu mental não-corporal, muitas vezes pensado como uma alma, espírito, ou simplesmente algo metafísico (que está além da física da coisas), que controla e comanda os nossos pensamentos e movimentos do corpo, a este comumente nos referimos simplesmente como Eu, que é dito ser a nascente de nossos pensamentos e ações voluntárias e portanto ultimamente a fonte originária de nosso mérito.
O que essa hipótese está realmente dizendo é que o nosso arbítrio é a capacidade que temos de emitirmos comandos de um mundo extra-físico, mental e não-corpóreo, para controlar o mundo físico, o nosso corpo, a engenharia interna do nosso cérebro. Em minhas palavras, que temos a capacidade de executar um ato de divinação.
Contrária a essa hipótese, penso que temos evidências em abundância de que decisões e ações conscientes são operações realizadas pelo nosso próprio corpo, em nosso caso especialmente pelo cérebro. E que evidências são essas? Basicamente todo trabalho realizado pela ciência da neurologia. Ao danificarmos certas partes do cérebro ou quando ocorrem disrupções em certos processos neurológicos podemos ter a memória comprometida, podemos sofrer mudanças comportamentais, ficar mais ou menos agressivos, mais ou menos empáticos, podemos perder a capacidade de controlar nossos movimentos, a capacidade de aprender, a capacidade de imaginar, podemos perder características da personalidade e entre outros. A ciência da neurologia nos fornece cada vez mais evidências na direção de que toda e qualquer habilidade que temos e ação que somos capazes de fazer dependem antes das condições do nosso corpo, principalmente do sistema nervoso e cérebro.
Ou seja, quanto mais a neurologia coleta casos de acidentes e investiga o funcionamento interno do cérebro através de experimentos, mais aprendemos que tudo que somos capazes de fazer está interligado ao funcionamento do nosso cérebro, que todo o material e o fluxo de informações físicas, químicas e biológicas presentes nele são sinônimos da nossa consciência e seus conteúdos, e isso inclui também a nossa capacidade de tomar decisões.
Que Somos Um com a Natureza
Se de fato aceitarmos que a nossa capacidade de deliberação, de tomar decisões, são no fundo completamente explicáveis por eventos corporais (cerebrais), então é lógico pensar que tais decisões são na origem produtos de ações involuntárias realizadas pelo nosso cérebro, afinal não temos a habilidade de controlar a atividade dos nossos próprios neurônios, da mesma forma que não controlamos a nossa produção de glóbulos brancos. Em outras palavras, nossas decisões possuem origens em processos biológicos involuntários sob o qual não temos controle mental. E mesmo que tivéssemos a capacidade mental de controlar a nossa atividade neural ainda nos restaria responder a seguinte pergunta: Se a capacidade mental de controlar nossa atividade neural é um fenômeno que nasce da nossa própria atividade neural como poderíamos dizer que efetivamente controlamos nossas decisões? Não poderíamos, pois é como imaginar um objeto que move a si mesmo sem a necessidade de força externa.
O que significa dizer que nem mesmo nossos pensamentos e decisões mentais são de nosso mérito, pois sempre há eventos biológicos involuntários anteriores que são a origem dos nossos processos mentais, da consciência e seus conteúdos. Por isso digo que esse tipo de mérito não existe, pois ninguém pode ser considerado responsável pela enorme quantidade de processos físicos, químicos e biológicos que acontecem a todo momento em seu corpo, incluindo aqueles que dão origem as nossas decisões voluntárias. Nem mesmo podemos ser considerados responsáveis em como esses processos interagem com os diversos ambientes ao seu redor. São esses processos físicos, químicos e biológicos realizados pelo nosso corpo, assim como suas reações ao ambiente em que estamos, que na verdade dão origem a nossa vida mental, nossos pensamentos, nossos sentimentos, e mais relevantes para o ensaio, nossas decisões conscientes.
Portanto essa noção de mérito existencial, em que somos realmente responsáveis por nossas escolhas conscientes e esforços porque somos os originadores delas através do Eu considero falsa, simplesmente porque não somos os originadores delas, tal noção ignora toda a cascata de eventos físicos antecedentes e simultâneos ao evento que chamamos de deliberação consciente.
Mesmo que não sejamos realmente responsáveis pelo comportamento do nosso corpo, ainda faz sentido falar da ideia de mérito autoral, isto é, ainda foi o meu corpo que escreveu este ensaio e não o corpo de João. Ainda faz sentido também falar de mérito qualitativo, para expressar excelência, isto é, João correu 100 metros em 8 segundos, eu por outro lado corri em 15 segundos, portanto João tem mais mérito que eu na tarefa de correr 100 metros rasos. E faz sentido prender pessoas por cometerem crimes pois até mesmo um urso que não tem a capacidade de controlar completamente a si mesmo ainda é capaz de causar grandes danos a outros seres vivos.
O que esse ensaio tenta abolir é a ideia de que João, ou qualquer outro ser vivo, tem mérito existencial, isto é, de que um suposto Eu não-corpóreo, que muitos denominam alma, é a fonte originária do mérito de João. João corre os 100 metros rasos mais rápido e toma as decisões que toma para se tornar um bom corredor por razões fisiológicas pela qual ele não tem controle, a física, química e biologia natural do seu corpo, assim como sua reações ao ambiente em que foi treinado, se teve acesso a nutrição suficiente, se seu corpo reage bem ao treinos ou não, se o seu corpo triunfa em provas de explosão ou não, se o corpo de João é capaz de suportar a rotina diária de treino necessário para se tornar um corredor excelente. Toda evidência indica que as decisões e as qualidades de João são um produto da sua biologia e da sua cultura, a noção de que existe um Eu-metafisico intermediando esses dois domínios é a noção que deveria ser comumente encarada com ceticismo.
Notas
[1] Alguns diriam que o computador que está utilizando neste momento é sim de seu mérito, porque embora não tenham produzido o computador este realizou trabalho em outra área e trocou esse trabalho realizado pelo computador, em suma realizou uma troca de méritos equivalentes. Essa é uma verdade sociológica dado o sistema de trocas de méritos que nós seres humanos desenvolvemos, porém foge do escopo desse ensaio que está atento com a origem do mérito, o seu nascimento e primeiros passos, a sua verdade filosófica, antes de qualquer sistema de troca se desenvolver.
[2] É claro que nosso corpo também realiza o que chamamos de ações semi-voluntárias, isto é, ações que podem ocorrer por conta de controle consciente mas que também podem ocorrer automaticamente sem pensamento deliberante. Um bom exemplo disso é o piscar de olhos, ação que em condições normais acontece involuntariamente e reflexivamente, mas também temos a capacidade de piscar os olhos voluntariamente.
Por Yuri Santana
Arte por Alphonse Aldophe Bichard - O Salto Notável do Barão de Munchausen (1883)
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