Em nossa sociedade contemporânea o modelo de empresa em que a função de um dono de negócio, que aloca recursos, define a direção estratégica da empresa, emprega trabalhadores, é vista como a única e necessária maneira de governar uma empresa que é conduciva para maximizar o bem-estar social. Nesse ensaio irei produzir críticas que questionam a necessidade desse modelo, principalmente no que diz respeito a relação empregador-empregado, e fornecer uma alternativa de organização no mundo trabalho que pode se alinhar melhor com os valores e ideais que carregamos.
Uma empresa é uma organização que se dedica a produção ou circulação de bens e serviços, normalmente com o objetivo de gerar lucro. Empresários, empregadores, são aqueles que investem em, ou criam negócios, é comumente dito que eles que carregam a maior parte do risco e usufrutam da maior parte da recompensa. O poder de controlar a empresa está em suas mãos, são eles, os empregadores, que definem a visão e a estratégia da empresa, as metas de longo-prazo, que fazem as principais decisões financeiras, que alocam capital para um ou outro fim, que definem como, quando e onde o trabalho será realizado assim como as metas de performance.
Os empregados são os responsáveis por implementar essa visão, eles executam tarefas específicas, colaboram entre si, e fornecem a força de trabalho e habilidades necessárias para contribuir com o objetivo geral da empresa em troca de compensação financeira. É essa, simplificadamente, a estrutura de funções moderna de uma empresa com ênfase na distinção entre o empregador e o empregado.
A maioria de nós está acostumado a utilizar o termo “governo” para nos referir geralmente as entidades públicas, mas o termo se usado de forma genérica pode se referir a um sistema responsável por administrar recursos, pessoas, definir padrões, aplicar regras. Um também pode usar o termo “administração” se preferir. Um grupo de pessoas que se reúnem para alcançar um fim geralmente possuem algum tipo de governo, e os tipos são os mais variados, um pode categorizar os tipos de governos de diversas formas, por exemplo quanto a sua estrutura (como os poderes de governar estão distribuídos), quanto a função (que tipo de atividade será governada), quanto a quantidade de pessoas carregam o poder (uma, poucas, todas), quanto a ideologia (quais são os princípios guiadores), e entre outras formas de classificação.
Utilizando esse sentido mais genérico do termo “governo” podemos dizer que uma empresa, seja ela privada ou pública, possui governo. Nesse ensaio o principal aspecto que criticarei será em relação a quantidade de pessoas que ultimamente carregam o poder decisório nas questões mais importantes de uma empresa, isto é, me atentarei ao número de pessoas que carregam efetivo poder no governo de uma empresa.
Quanto ao número de sócios a grande maioria das empresas hoje em dia possuem apenas um titular ou um grupo pequeno de pessoas que são juridicamente e financeiramente responsáveis, geralmente os donos do negócio. Nesse grupo está concentrado uma enorme quantidade de poder decisório sob uma empresa, isto é, este grupo, ou esta pessoa, possui o monopólio quanto as decisões mais importantes no que diz respeito a empresa, conforme sua discrição podem decidir fechar o negócio unilateralmente, podem mudar os bens e serviços fornecidos, podem demitir e contratar quando bem entender, podem mudar a visão estratégica da empresa, podem decidir unilateralmente o que fazer com os lucros, e entre outros. Decisões que podem afetar consideravelmente para melhor ou pior todos os outros integrantes da empresa, os empregados. O nome para esse tipo de governo se chama monocracia ou autocracia, quando se trata de apenas uma pessoa, ou ainda, oligarquia quando se trata de um grupo pequeno de pessoas, sócios, com poder efetivo de governança, de decisão efetiva sob as questões mais importantes de uma organização.
Nesse modelo dizemos que esta autocracia ou oligarquia é justificada, afinal na maioria dos casos, foi o dono do negócio que teve ideia inicial da empresa, que tomou as dores iniciais de levantar o negócio, que investiu capital e correu alto risco financeiro para criar a empresa, foram esses atos que lhe conferiram legitimidade e poder absoluto de governança nas decisões finais de uma empresa enquanto ela sobreviver, além do que os excessos de poder que podem ocorrer são tratados e limitados pelo estado, pelas leis trabalhistas, assim é argumentado.
Meus questionamentos sobre o argumento acima serão detalhados em outro ensaio. Esse ensaio simplesmente advoca por um modelo alternativo de governança no ambiente de trabalho, um modelo de empresas democráticas, isto é, em que ultimamente o poder decisório sobre questões de suma importância da empresa em que um trabalha seja decidido pelo voto do trabalhador.
No campo dos valores a contradição na mente de um deveria ser evidente: Como um pode viver em uma sociedade que se vangloria a todo momento das suas disposições democráticas, que condena toda forma de governo estatal monocrática, mas que no próprio ambiente de trabalho, lugar em que seres humanos passam a maior parte do seu tempo, nenhum vestígio de processo democrático é encontrado?
O que sustenta uma nação democrática é a noção do poder do constituinte, isto é, que as pessoas, os cidadãos ultimamente são quem possuem o poder de estabelecer ou mudar a ordem política, que o poder emana do povo. Esse princípio de alguma forma é completamente esquecido no mundo do trabalho, para quem possui profundos valores democráticos o constituente é quem deve ultimamente ter o poder sobre a forma de governo da instituição que faz parte, afinal são os cérebros e músculos dos constituintes que sustentam a organização em pé, se no contexto de uma nação o poder emana do povo, no contexto de uma empresa, seja pública ou privada, o poder emana do trabalhador.
Um talvez sugira que inserir democracia no ambiente do trabalho seja convidar burocracias desnecessárias para atrapalhar nossas vidas, para atrapalhar o que mais gera valor no trabalho, o processo de produção. Será que realmente é uma burocracia desnecessária fazer parte de um processo decisório que efetivamente leva em conta os interesses de todos os trabalhadores de uma empresa? Participar de um processo democrático decisório é o que deixa o trabalhador livre da imposição de apenas uma pessoa, ou um grupo de pequeno de pessoas.
No contexto da nação, não que eu seja feliz com os trâmites e por vezes confusões que o processo democrático gera, um chega até a se lamentar pela existência da burocracia democrática, e da lentidão que gera na tomada de decisão por necessidade de levar em conta os interesses de diferentes grupos, mas me lembre que antes disso tinhamos ditaduras, e refresque minha memória um pouco mais e me diga que tínhamos reis, e que eles eram a lei, então meu sorriso volta ao rosto e fico até contente assistindo deputados se degladeando no âmbito democrático, embora pense que todo o processo poderia ser feito de forma mais eficiente e eficaz nem por um segundo deixo de aspirar por valores democráticos. Por isso penso que certos custos burocráticos de uma democracia no ambiente do trabalho valem o retorno de uma organização livre da imposição decisória de apenas um, ou um grupo pequeno de pessoas, sob a massa de trabalhadores.
Um argumento que é contra a ideia de democracia no trabalho é o de que o empregado não tem a expertise que o empregador tem quanto um administrador de negócios e portanto tal sistema democrático não funcionaria. Mas esse é simplesmente um desentendimento sobre como um sistema democrático funciona, um sistema democrático não busca eliminar a expertise de administrar negócios, a diferença é que num sistema democrático tal expertise é usada para representar os interesses dos constituintes, nesse caso todos os trabalhadores, em contraste com a maneira de governança atual das empresas monocráticas que o administrador principal do negócio, o dono, representa apenas a si mesmo.
Se um pensa que a falta de expertise em administrar negócios do trabalhador é um problema para a participação democrática na tomada de decisões importantes da empresa então um ainda não notou como realmente um sistema democrático funciona, tomemos o nosso sistema de governo democrático estatal, poucos de nós temos expertise em direito, mas todos nós votamos em representantes para demonstrar quais leis gostaríamos que fossem implementadas em nosso país, a maioria de nós não somos experts em economia, mas votamos a cada ciclo com a intenção de demonstrar como será gasto nosso tesouro nacional, quase nenhum de nós somos experts em educação mas votamos afim de influenciar sobre o que a juventude aprende nas escolas, em outras palavras, numa democracia expertise é para ser usada na direção dos interesses dos constituintes, os cidadãos. Argumento que o mesmo pode acontecer numa organização cuja meta é produzir bens e serviços, isto é, mesmo que todos trabalhadores não tenham expertise em negócios, não sejam líderes estratégicos, gerentes operacionais, nem matemáticos financeiros, os interesses dos trabalhadores devem ser o guia de uma empresa.
Enquanto é bem provável que se fôssemos experts em alguma área do conhecimento votariamos melhor com respeito aquele tópico específico, os nossos valores democráticos envolvem o reconhecimento que mesmo que os cidadãos estejam desinformados, ou persuadidos erroneamente sobre os mais variados assuntos o seu direito de participar efetivamente, não é, e não deve ser extraído. Envolve o reconhecimento da falibilidade humana, até mesmo de experts, e a sabedoria de que apesar de verdadeiramente expert um pode usar a sua expertise apenas, ou majoritariamente, a favor do seu interesse ou do interesse do seu grupo preferido, intencionalmente ou não.
Funções de liderança ainda são essenciais e podem por exemplo ser executadas por um representante da empresa, caso trate-se de uma empresa com estilo democrático representativo, alguém responsável por criar a visão do negócio, supervisionar finanças, gerenciar mercados e vendas, ter certeza da conformidade legal, desenvolver e liderar times, tentar assegurar rentabilidade e crescimento. Essas são funções que um integrante da empresa pode perfomar sem necessariamente ter o poder monocrático sobre todas as decisões mais importantes referentes a uma empresa, não é como se houvesse uma impossibilidade estrutural, hierarquia organizacional não é antagonista a ideia de democracia. Mas a diferença entre um dono de negócio numa empresa monocrática e um representante de negócio numa empresa democrática é considerável, no aspecto da quantidade de poder por exemplo análogo a diferença entre um rei e um presidente.
Não surpreendente temos uma sociedade em que a meta de muitos empregados é se tornar empregadores, boa parte da razão desse desejo é a de não querer mais estar submetido as vontades arbitrárias de seus empregadores, que muitas vezes tem poder até mesmo sobre sua vidas pessoais. Desejando se tornar empregador na atual forma e cultura que temos no mundo trabalho é nada mais do que reproduzir a relação invertidamente. Democracia no mundo do trabalho é uma tentativa de lhe dar com esse problema, de admitir que a fonte de poder de cada organização realmente emerge do conjunto de seus constituintes, e que a definição das regras e convenções de cada um desses lugares merecem a participação efetiva de todos os trabalhadores.
Um deve prestar atenção a algo bem importante, democracia não mira em resolver todos os problemas no mundo do trabalho, mas apenas garantir a participação efetiva do trabalhador nas decisões mais importantes da empresa. Não resolve todos os problemas internos de uma empresa, de organização, de produção, de burocracia, de corrupção, de arrecadação, de salário, apenas remove o poder total de decisão da mão de um e coloca na mão de todos. Torna todas as questões que sejam de importância para o trabalhador na empresa abertas para o voto do trabalhador. Certamente um ambiente de trabalho democrático trará novos problemas e novos desafios, acomodar os interesses de diferentes tipos de trabalhadores por exemplo não é tarefa fácil, mas argumentaria que esses seriam uma classe de problemas melhores que os existentes no modelo atual, simplesmente porque dá poder de decisão efetivo a todos os trabalhadores.
Um também sabe que empresas existem em diferentes tamanhos e escalas, e que cada empresa possui um contexto relevante que pode mudar a forma da democracia utilizada, talvez uma democracia representativa seja mais adequada para uma certa escala de empresa, enquanto uma democracia direta para outra, mas novamente esse ensaio não mira em escrutinizar os diferentes tipos de democracia e decidir quais deles melhores se encaixariam em uma empresa, o ensaio mira em simplesmente tentar fornecer a ideia para o leitor de que democracia é um ideal que também vale apena ser experimentado no ambiente de trabalho.
A ênfase aqui é apontar a necessidade de inserir valores democráticos que já temos dentro do ambiente de trabalho, uma tentativa de apresentar novos ideais, menos sobre os diversos processos de implementação e seus problemas, mas muito mais sobre o porquê tal ideia pode ser alimentada primeiramente. Também não é focado em apontar dedos para bons ou maus atores do sistema atual, afinal no mundo contemporâneo para grande maioria das pessoas apenas duas opções são fornecidas no mundo do trabalho, ser empregado ou empregador, funcionário ou chefe. Outras concepções nem se quer são apresentadas, muito menos incentivadas, não existe cultura presente que forneça um modus operandi diferente para o trabalhador. Não há nenhum impecilho jurídico para a criação de empresas democráticas, elas existem em tão pouca quantidade provavelmente: Ou porque a ideia nunca passou pela cabeça de um; Ou porque um não sabe como criá-la; Ou porque um acha má ideia. Esse pequeno ensaio tenta apresentar ideia e alimentar o leitor com alguns argumentos.
Por Yuri Santana
Arte por Fernand Leger - 1951
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